terça-feira, 7 de julho de 2009

Ofícios I

porteiro.

coçou o bigode três vezes e suspirou. por entre as grades via-se uma moça caminhando, mas quase não reparou, ao menos não lhe chamou atenção. normal. passaram duas outras, velhas, um sujeito com um cachorro, e um outro sujeito com um cachorro. ligou o rádio a pilha. por entre o chiado ouvia-se um baião agalopado cantado por não sei quem, porém certamente de mau gosto. e num instante removeu-se completamente da portaria do edifício, e já por entre os dedos do pé sentiu a terra seca e rachada dos tempos de menino, longe, bem longe dali. lembrou da rapadura do tio zezão. viu a moça menina que tanto era impossível, difícil de se ver de tão bonita. ouviu os três amigos pelados chamando-o para brincar na praça, pois era domingo. sentiu a palmada doce da mãe e o cinto impiedoso do pai. viu a casa de dois quartos cujas paredes de barro guardavam pequenas surpresas, às vezes ingratas; os irmãos jogando cartas na mesa; a vó que dava pena de se ver. saboreou o gosto de mingau aos sete anos. o bordado do vestido da irmã, sentiu roçar no rosto. as coxas de dona nalva, ah que coxas eram aquelas... e viu, com clareza, o esconderijo das bolas de gude atrás do rádio da sala que sempre esteve quebrado. mas isso foi antes. agora é isso. tempo de lembrar é pros outros, pensou. bateu-lhe uma tristeza estranhíssima, quase saudade. a campainha soou. “boa tarde, seu Waldemar”, “boa tarde, senhora”. abriu a porta mecanicamente e acenou com educação. o relógio apontava cinco pras seis. desligou o rádio. deu mais uma olhada para a rua mas não viu nada nem ninguém. só grade.

sábado, 20 de junho de 2009

Sonho estrábico

Estou sozinho na gare.

Avisto o que julgo ser um trem mas que poderia ser um campo coberto de margaridas ou um ponto de táxi congestionado, ou uma tigela de manteiga desproporcional, ou pode não ser nada disso.

Ando em direção ao trem(tigela?) sem mal sair do lugar.
O esforço enorme não incomoda, na verdade já não lembro aonde ia mesmo e sinto-me subitamente tomado de emoção pela cena que se desenvolve logo à frente:

Inenarrável.

Volto em seguida.
E noto que já não há mais trem na gare, se é que havia uma tigela de margaridas. Na verdade espero num banco da rua General San Martin ao lado de um palhaço cujas sobrancelhas de um negro espesso perfume naftalínico remetem à lembranças remotas de uma tia-avó – chamava-se Eululália e era pálida em três línguas mas não era feliz, certamente não era.
Permaneço imóvel(fizemos isso durante quatro copos d’água) assistindo inocentes indivíduos passando de lá pra cá e um punhado de nuvens inúteis jogando amarelinha sobre pássaros cor abóbora muranga porém humildes.
Reclamo bravamente sem dar um pio e sinto-me poeta, enfim.

Por fim discordo do silêncio encenado que me(nos) aflige e faço-lhe a pergunta cretina que guardo no âmago do estômago em forma de bile - substância mal quista em círculos socias por ser puro obséquio de gosto pastel e textura infeliz. A resposta do palhaço provoca ligeira amargura na superfície do meu peito e a ponta da língua se distrai, distomba distante;

Engan[amo]o-me[nos] novamente.

No mesmo instante sinto algo peculiar e úmido brotando no canto direito do olho. Vejo nublado. Desesperado, procuro interceptá-lo com as costas das mãos; não dá. Minhas mãos inflaram, são mãos enormes obsoletas mãos grudadas em pulsos que outrora estiveram acorrentados à relógios redondos e pretensiosos como deveras são os relógios.

Empapossado em inércia obsidente, concluo ali e agora que todas incertezas estão sob a pena do sustento dos pesos onde a escápula se une à clavícula e ao úmero, mas também pode não ser isso.

Verto o líquido inédito e mato o palhaço.

Ando subindo escadas

Recentemente fui informado por especialistas que o elevador é o meio de transporte mais seguro da humanidade. A noticia me acalmou, confesso, mesmo porque eu andava suspeitando do funcionamento dos elevadores, assim como ainda suspeito do funcionamento das escadas, corredores, almoxarifados e qualquer uma das obras humanas. Mas verdade seja dita: flatulências e pequenos desconfortos à parte, as experiências neste caixote mortal tendem a terminar num final no mínimo agradável. Portanto, até provado o contrário, é necessário se render ao desempenho espetacular dos elevadores. Sejamos complacentes.
Inspirado pela notícia, resolvi mencionar o assunto ao amigo Gláucio, ascensorista ilustre do prédio Odeon. Ele havia de ser testemunha honorária das inúmeras maravilhas de ascensão mecânica desde seus primórdios. Iniciei a conversa fornecendo-lhe os dados sobre a segurança dos elevadores: de como são pequenos os índices de contusão, membros decepados e fatalidades em geral. Acabei por me empolgar, pois quando percebi estava discursando em tom eufórico sobre a bravura da máquina e a nobre arte da elevação: como ela desafia diariamente os limites impostos pela gravidade com regularidade esplêndida e segurança intangível; como, ao pressionar de um simples botão, nos ergue gloriosamente sobre o patamar mais alta da sociedade utilizando-se apenas de três dedos de óleo; como nos lança ao infinito - e ao abismo - exclusivamente amparada por um fio metálico impressionante!
Para meu espanto, o ascensorista Gláucio não se sensibilizou nem compartilhou da minha comoção. Foi então que ele resolveu me confidenciar, em tom sincero, sua verdadeira opinião sobre o funcionamento dos elevadores: – “O senhor que tire suas próprias conclusões, Seu Aderbal, mas como eu penso é o seguinte: o elevador é o mal da humanidade. Preste bastante atenção, subir e descer não traz perigo, não. Nisso o senhor ta é certo. O perigoso é quando pára. Quando sobe e desce bonitinho, todo mundo aplaude, solta risada e dá ‘bom dia’, ‘boa tarde, Seu Gláucio’. Mas quando o bicho pára, hum, quando num sobe nem desce, quando o tempo vai-que-não-passa e o espaço aqui de dentro vai ficando pequeno e pequenino, o ar fraquinho fraquinho, é que agente vê quem é quem, Seu Aderbal. E é aí que mora o perigoso: quando as pessoas são o que é.” O dizer meticulosamente arquitetado pelo ascensorista, que mais me pareceu algo retirado de um texto de Guimarães, impressionou-me de tal modo que quase vomitei de emoção. Estava claro, no falar incerto do seu Gláucio, que os dados por mim proferidos eram de deplorável imprecisão, que meu discurso pomposo foi resultado de uma breve e rala sessão de masturbação mental. Saltei perplexo do elevador, verdadeiramente envergonhado.
Rapidamente me vi na necessidade de reavaliar meus conceitos sobre a elevação. Deveras era necessário adicionar o fator de instabilidade humana nos cálculos de segurança, ignorá-lo seria um absurdo monumental.
Ao pesar o novo juízo junto à velha visão empírica, pude perceber que novamente havia sido enganado pelos malditos especialistas. Os números não mentem, verdade, mas ignoram com naturalidade alarmante o problema que mais aflige a raça humana: o homem.
Resolvi me despedir por definitivo do ascensorista Gláucio. Não havia mais porquê me expor aos perigos do elevador nem utilizar os seus serviços. Desejei ao coitado toda sorte do mundo, dei-lhe um abraço apertado e parti sem olhar para trás. Sempre há de haver aqueles que se dispõem a estar nas trincheiras da humanidade, expostos as maiores atrocidades do convívio social, combatendo diariamente os males urbanos, à mercê dos perigos inventados pelos homens para os homens. Há sempre alguém disposto a exercer esses nobres ofícios por amor à pátria ou necessidade salarial. Mas só mesmo um louco para confiar nos dados de um especialista.

Autobiografismo biodegradável.

...

Aquilo que minha mãe pariu – ou seja,
um predefunto embalado
em perfume de muco – sou eu.
Deram-me dois tapas como dita o manual,
E algo bastante similar a um choro
mas que não passa de uma tentativa
barata de chamar atenção, soou sob protesto.
É isso, garantiram-na: está vivo.
Corrigi-os instantes depois
encenando um prático deslocamento de pleura.
Foram todos a loucura( momento de glória!)
Depois vieram os percalços, as dívidas,
as obsessões, as manias, as patologias, os amores,
as farsas, os copos de cerveja vazios
e o hálito de hortelã que eu esqueci de comprar,
e dois cigarros e alguns livros.
Nada mudou.
Hoje escrevo
à tapas,
com o mesmo perfume de muco da mamãe,
encenando um pneumotórax crônico que não engana mais ninguém.

...