terça-feira, 7 de julho de 2009

Ofícios I

porteiro.

coçou o bigode três vezes e suspirou. por entre as grades via-se uma moça caminhando, mas quase não reparou, ao menos não lhe chamou atenção. normal. passaram duas outras, velhas, um sujeito com um cachorro, e um outro sujeito com um cachorro. ligou o rádio a pilha. por entre o chiado ouvia-se um baião agalopado cantado por não sei quem, porém certamente de mau gosto. e num instante removeu-se completamente da portaria do edifício, e já por entre os dedos do pé sentiu a terra seca e rachada dos tempos de menino, longe, bem longe dali. lembrou da rapadura do tio zezão. viu a moça menina que tanto era impossível, difícil de se ver de tão bonita. ouviu os três amigos pelados chamando-o para brincar na praça, pois era domingo. sentiu a palmada doce da mãe e o cinto impiedoso do pai. viu a casa de dois quartos cujas paredes de barro guardavam pequenas surpresas, às vezes ingratas; os irmãos jogando cartas na mesa; a vó que dava pena de se ver. saboreou o gosto de mingau aos sete anos. o bordado do vestido da irmã, sentiu roçar no rosto. as coxas de dona nalva, ah que coxas eram aquelas... e viu, com clareza, o esconderijo das bolas de gude atrás do rádio da sala que sempre esteve quebrado. mas isso foi antes. agora é isso. tempo de lembrar é pros outros, pensou. bateu-lhe uma tristeza estranhíssima, quase saudade. a campainha soou. “boa tarde, seu Waldemar”, “boa tarde, senhora”. abriu a porta mecanicamente e acenou com educação. o relógio apontava cinco pras seis. desligou o rádio. deu mais uma olhada para a rua mas não viu nada nem ninguém. só grade.

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